segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Cemitério de Praga, de Umberto Eco

Eu tinha conseguido, entretanto, um encontro com o Sr. Gougenot des Mousseaux. Era um septuagenário já débil de espírito, convencido das poucas ideias que tinha, e interessado apenas em provar a existência do demónio e dos feiticeiros, bruxos, espíritas, mesmeristas, hebreus, padres idólatras e até «electricistas» que defendiam a existência de uma espécie de princípio vital.
Falava de maneira fluida, e tinha começado desde as origens. Eu escutava resignado as ideias do velho sobre Moisés, sobre os fariseus, sobre o Grande Sinédrio, sobre o Talmude, mas Gougenot oferecera-me entretanto um óptimo conhaque, deixando distraidamente a garrafa sobre uma mesinha diante dele, e eu suportava.

Ave!
Umberto Eco foi um dos grandes intelectuais e pensadores da nossa época. Inúmeras foram as vezes que me deliciei a ler as suas entrevistas nos jornais, e no entanto nunca havia lido um dos seus livros. Quis a ironia desta vida que eu comprasse o primeiro livro de Eco dois meses antes da sua morte.
O Cemitério de Praga é um livro “pesado”, no sentido em que foi escrito por um homem deveras erudito, e como tal não é facilmente acessível ao público mais generalista. Não digo que seja necessário ser-se um intelectual como Eco para ler a obra, mas porventura ajudava…
O livro acompanha a transição turbulenta da Europa do século XIX para o XX, pelos olhos do Capitão Simonini. Ou será pelos olhos do abade Dalla Piccola? O melhor será perguntar àquele Dr. Fröide, o alemão (ou será austríaco?). Confuso? Exacto. Era assim que Eco pretendia que o leitor ficasse no início da narrativa, para depois, ao longo de vários anos, e com a ajuda de personagens reais, como é o caso de Alexandre Dumas, irmos desenrolando o novelo tão intrinsecamente composto.
É impossível não nos apaixonarmos por Simonini logo no início do livro. Das centenas de livros que li até hoje, não me recordo de uma personagem tão impressionante nas primeiras páginas. Simonini odeia franceses. E italianos. E alemães.

Aos alemães conheci-os, e até trabalhei para eles: o mais baixo nível de humanidade concebível. Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função intestinal, em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com os montões desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos séculos passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo das estradas.

E é assim Simonini, o homem que prega como máxima de vida o odi ergo sum: Odeio, logo existo! Simonini também odeia mulheres, e padres, e hebreus, e judeus. Sem freio, Eco escreve uma prosa delirante, sem o mínimo de contenção, da forma mais politicamente incorrecta imaginável.
A história decorre em episódios que alternam cronologicamente, e que recordam a passagem de Simonini pelo exército de Garibaldi, e a sua laboriosa relação com a Igreja. É precisamente neste ponto que se foca o cerne da história. As seitas religiosas, as suas lutas políticas, o satanismo, a maçonaria, a carbonária, hebreus, judeus, cristãos. Percebe-se facilmente que estão reunidos os ingredientes para um livro polémico quanto baste. Eco mergulha num mundo fascinante de falsificação de documentos, missas negras, manipulação, e total ausência de ética. E o mais incómodo, é chegar ao final da história e perceber (tal como explicado pelo próprio Eco) que todas as personagens do livro são reais, com excepção do protagonista. De resto, é viajar pela gastronomia da época (e agarrar as tripas para não produzir mais matéria fecal do que os alemães a que Simonini alude), mergulhar nos estranhos mundos das guerras inter-religiosas, e saborear cada palavra.
Em verdade, o livro não é sustentado numa história muito interessante de se ler, mas a escrita de Eco é tão boa, que este nunca se torna aborrecido. Há também que elogiar o magnífico trabalho de tradução da parte de Jorge Vaz de Carvalho, edição da Gradiva (2011), que nos serve o colosso literário de Eco na magistral Língua Portuguesa: atrabiliárias, anfractuosidades, tugúrio, sodalício, nequícias.
O Cemitério de Praga é um livro que exige tempo, atenção, alguns conhecimentos de História, e porventura… um dicionário. Mas no fim, quem conseguir vencer a ignávia aprende muita coisa, e sente que valeu a pena o investimento.

  

Addendum


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